#6 Caramujo

Leonardo Andrade
3 min readDec 18, 2019

O menino acorda no meio da noite, assutado. Sua pele arde. Sua garganta arte, e seus olhos. Todo o exterior de seu corpo está terrivelmente, dolorosamente seco. O menino tem vontade gritar, mas se sente fraco.

Ele rola para fora da cama e faz algo entre engatinhar e se arrastar pelo chão, tentando ser econômico com seus movimentos e encostar a pele o mínimo possível no carpete seco. SECO. As vezes ele interrompe o deslocamento para cuspir e esfregar a saliva em seu torso nu. Não é o suficiente. Falta-lhe até a saliva.

Chegando ao banheiro, ele agarra a borda da pia ainda meio úmida, sentindo um prenúncio de alívio quando seus dedos escorregam na camada fina de água e espuma de pasta de dente. Ele puxa seu peso para cima e abre a torneira, enfiando a cabeça debaixo da torrente, fazendo uma bagunça. Untando seu corpo todo.

Um pouco revigorado, ele arranca as roupas que agridem sua pele hiper-sensível e liga a chuveiro. Antes de a água poder esquentar ele gira o dial de temperatura para o lado frio e se esparrama no piso de azulejos. Água escorre para fora da pia. Água do chuveiro extrapola os limites do box porque o menino está tampando o ralo com seu corpo. Dias de cabelo acumulado no azulejo grudam nele, e ele não se importa.

Quando sua mãe vem questionar porque ele está tomando banho de madrugada e vê a água encharcando o carpete ela grita e corre até a porta. Sua mãe o encontra nu, caído no piso, de olhos fechados e respirando pesado. Ela se desespera. Ele abre os olhos ao ouvir sua voz, mas não consegue nem pensar em uma resposta. As palavras que saem da boca dela são só sons. A mente do menino não comporta palavras no momento, apenas sensações corporais básicas. Ele se debate quando sua mãe tenta levantá-lo, e grita angustiado quando ela fecha a torneira. É um som tão horrível que ela torna a abri-la enquanto grita para o pai chamar uma ambulância.

Oito casas à direita, o indigente viscoso e fétido com caramujos sob o roupão mal fechado rabisca uma espiral de muco em um muro. Ele tem olhos vidrados e uma boca como um esfíncter. Um dos caramujos cai no chão com uma pancada oca, rachando a concha, mas eventualmente começa a se mover na direção do jardim orvalhado dos Cardoso. O homem dá uma risadinha e volta a cantarolar. Ele faz um péssimo trabalho com Bs, Fs, Ms, Ps e Vs. A saliva escorre entre os fios de barba rala em seu queixo.

“…

Veja uma lesma e se casará com um solteirão

Veja um caramujo e se casará com um viúvo

ehehehehehehe”

Ele escarra na calçada e dá as costas ao seu trabalho hediondo, dando-se por satisfeito, calculando mentalmente onde deve ficar o próximo desenho. Os gritos do menino chegam aos seus ouvidos e ele quase sorri. Treze ruas ao norte, dois homens atracados com uma mureta de calcário são arrastados forçosamente até viaturas policiais. O mais verbalmente apto — mas nem de longe mais lúcido — dos dois vocifera:

“Me solta! Me solta! Me solta! Eu preciso dos minerais! Eu preciso dos minerais! Me solta! Eu preciso dos minerais PRA MINHA CONCHA!”

Os homens estavam lambendo as pedras. Sangue escorre de sua língua, umedece seus lábios.

Na esquina mais próxima, uma espiral de muco reflete a iluminação amarelada de um poste. Vinte e uma ruas ao leste, uma mulher devora vorazmente o conteúdo da lixeira de sua cozinha, refestelando-se no piso molhado sob o olhar confuso de seu gato, que traz na boca um caramujo morto.

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