O coração das trevas é aqui

Leonardo Andrade
20 min readFeb 6, 2020

Primeiro, os três ouvem os enormes tambores dando o ritmo da marcha. Vários, enormes, em uníssono. A batida se alastra como trovão nascido na terra, cada vez mais perto. O som ganha volume até que vidraças ao alcance da vista vibrem, depois paredes e suas gargantas. Nesse momento as duas mulheres armadas e o garoto empurrando a carriola começam a ouvir centenas de vozes cantando e várias que apenas gritam em agonia e êxtase.

“Tende compaixão de nós, senhor

Por que somos pecadores

Manifestai, senhor, a vossa misericórdia

E dai-nos a vossa salvação

Deus todo poderoso, tende compaixão de nós

Perdoai os nossos pecados

E nos conduz à vida eterna

Amém”

Ao canto falta a coordenação marcial dos tambores. Menos de metade das vozes acompanha a batida. A maioria segue os ritmos tresloucados e erráticos das chibatadas.

Andréa, a mulher mais nova, andando na frente da outra e do menino, com uma flecha pronta e a mão do arco tremendo um pouco, ouve o som das tiras de couro contra a pele com mais que apenas os ouvidos. Não faz muito tempo, foi englobada por uma massa de flagelantes que tentaram redimir também os seus pecados pela dor. Suas memórias do episódio ainda são extremamente vívidas. As cicatrizes também.

Ela se vira e gesticula para Giovanna, que segura o revólver com uma mão e Lucas com a outra. O trio corre para se esconder na ruína calcinada do posto-de-gasolina a uma quadra de distância da Avenida Higienópolis, que logo será bloqueada naquela altura pela procissão uivante. Giovanna não se senta atrás do maior pedaço de telhado tombado tão prontamente quanto os outros dois.

— Andréa?

— Hm?

— Não é melhor nos afastarmos mais da Avenida?

— Não. Estamos bem aqui, e quero ver se sobrou algo no escombro de conveniência. Ninguém se desgarra de uma massa penitente dessas. Eu mal sobrevivi a uma de trinta pessoas e…

— Meu Deus — Giovanna balbucia olhando para cima ao mesmo tempo em que agacha ao lado dos outros dois.

Lucas tenta olhar por cima do esconderijo e Andréa o puxa para o chão rapidamente. Três caminhonetes precedem a horda, com mastros do tipo em que eram hasteadas bandeiras antes de quase todo mundo enlouquecer ou morrer. No topo de cada mastro, há um homem crucificado. O do meio é o único que não está visivelmente podre, um gordo rosado de cabeça raspada.

Os flagelantes bloqueiam a visão do outro lado da avenida e a barulheira é quase insuportável. O menino tampa os ouvidos com as mãos, aparentemente mais incomodado com o volume da algazarra que com seu conteúdo. Giovanna não percebe e acrescenta suas mãos às dele, olhando para a rua de onde vieram e prestes a vomitar. Andréa se desloca furtivamente até o que restou da loja de conveniência, e começa a remover o entulho sem abandonar a cobertura. A praticidade supera o horror à situação e ela suporta estoicamente a algazarra.

A passagem dos minutos é sentida como lixas diretamente sobre o cérebro. O humor de Andréa melhora um pouco quando ela constata que o posto incendiou-se e desabou antes que outros sobreviventes conseguissem levar tudo. Talvez o fogo tenha sido contido por uma chuva oportuna, ela pensa, pois quanto mais fundo no escombro ela penetra, mais água encontra, e vários dos pacotes que revela estão em boas condições. Batatas fritas, chocolates, barras de cereal.

Lucas ficará contente. Talvez até sorria seu sorriso dentuço, de que ela sente tanta falta. Uma saudade de quase um ano agravada pelo fato de que antes ele sorria o tempo todo. Olhando para ele e Giovanna, ela sente o nó se formando na garganta e percebe que está prestes a chorar. Por isso, volta a fuçar entre retalhos de concreto queimado e metal retorcido, derretido, partido. A gritaria e o canto afogarão seus soluços e gemidos. “Amém, seus filhos da puta.”

Ela encontra dois pacotes de cigarros, e os mostra aos outros dois sem olhar para trás. Giovanna acena positivamente assim mesmo. São os livros que estão indo buscar que lhes garantirão a entrada no território dos Restauradores, mas uma vez lá dentro, é bom ter algo com valor de troca. Encontrar os cigarros é uma baita sorte.

Andréa para o que está fazendo ao deparar com uma geladeira tombada, com a porta virada para baixo e o fundo deformado por um pesado pedaço de teto. Não tem como virar aquilo sozinha sem se expor. Ela seca os olhos com a manga imunda do pulôver multiplamente remendado que um dia foi verde-água, e torna a sentar-se junto dos outros dois.

O barulho diminui gradativamente e quando restam apenas alguns gemidos e as chibatas que se ouve são fracas, Giovanna decide espiar a avenida. Os retardatários se arrastam pela rua chorando suas preces enquanto a grande massa de seus pares de afasta. Eles caminham trôpegos como bêbados, ajoelham-se, continuam de gatinhas, arruinando os joelhos e cotovelos enquanto poupam costas e flancos da chibata. Três caem e não se levantam mais enquanto os outros somem de vista.

Em algum ponto entre o começo e o fim da espiadela de Giovanna, Lucas desvencilhou-se de suas mãos e voltou-se para Andréa.

— A gente vai comer bem hoje? — a pergunta sai quase sem inflexão, para não parecer esperançosa demais. Ele evita entristecer suas mães mais do que o necessário, sendo usualmente muito contido, mas está com fome.

Ela joga a mochila aberta para o garoto. Ele a pega no ar e a sacudida faz alguns dos pacotes caírem no chão. Ele suga o ar barulhentamente, preenchendo os pulmões tão rápido que chega a doer. O maxilar inferior pende embasbacado enquanto ele encara o tubo de Pringles rolando pela calçada preta de fuligem até parar em uma rachadura.

Apesar dos eventos recentes e do silêncio subsequente, a tensão antes densa e sufocante se dissipa e dá lugar a uma atmosfera quase leve. Giovanna arrisca alguns hum-hums musicais aos quais Andréa e Lucas não se opõem. Isso dura por quase todo o processo de encher as mochilas, mas o odor podre que sai das diversas refeições outrora congeladas quando conseguem virar a geladeira a interrompe. Em compensação, encontram duas garrafas de isotônico dentro do prazo de validade.

Então os três se levantam e continuam o trajeto.

A roda torta da carriola escorrega nos trechos vermelhos da avenida, empurrada pelo menino que olha apenas para a frente, como se lhe tivessem posto antolhos. As mulheres à sua direita e esquerda esquadrinham cada metro quadrado ao alcance da vista, desconfiadas. Os pássaros que vieram se alimentar desviam de suas pernas com má vontade. O trio termina de atravessar.

Uma dupla de pombos se aproxima do velho caído na sarjeta, e ele tenta afastá-los de seu flanco com um movimento letárgico do braço. Os bicos não perdoam sua carne e ele não tem voz para expressar o quanto isso o atormenta. Esgotou-a em apelos à misericórdia de Deus e pragas contras os pecadores que adiantaram o Apocalipse.

Sodomitas, banqueiros, esquerdistas!

Andréa o vê de longe, dessa vez servindo de retaguarda para Giovanna e Lucas. Ela pensa em gastar uma flecha para livrar o velho da dor. Gastar, pois se efetuar o disparo, não tem a menor pretensão de ir recuperar o projétil. Por isso só pensa.

O sol está terminando de se por. O menino dorme encolhido em um canto da sala de espera na clínica de estética que escolheram como esconderijo para a noite, com a cabeça sobre a mochila. É um legítimo sono-blecaute, proporcionado pela exaustão e talvez também por ter se fartado de batatas fritas. Não fosse o subir e descer constante do peito, ele poderia passar por um dos milhares de (quase, possíveis, semi-?)cadáveres que se recusam a apodrecer em camas por toda a cidade.

Poderiam explodir uma bomba na casa ao lado que ele não acordaria, imagina Giovanna, correndo os dedos pelo cabelo castanho de seu filho. Ela fala baixinho de qualquer modo, entre mordidas na barra de chocolate que escolheu.

— Você acha que vamos encontrar tudo que os Restauradores puseram na lista?

Andréa hesita, para de afiar sua faca por um instante, e ao responder fala com firmeza:

— Se o lugar estiver inteiro, sim. Não acho que mais alguém esteja disposto a arriscar a vida por uma edição centenária do — a voz sai com algum escárnio ao nomear o livro, ela faz um monóculo com os dedos diante do próprio rosto — de complit uorrcs of barão Alfred Tenis-son. Não depois de tanto tempo.

The

— Não começa!

— … Complete Works of

— Você era minha professora também até o momento em que aquele ônibus…

Baron Alfr

— … invadiu a frente da escola.

Giovanna ri baixinho.

— É verdade — concede — mas o monóculo convidou uma intervenção pedante.

— HA, HA. — Andréa soa mais aborrecida do que parece. Uma ameaça de sorriso se desenhando no canto esquerdo da boca.

— De verdade, eu até gosto do erre de garganta que você colocou em works. Acho um charme. Queria que você ainda tivesse todo esse sotaque quando fala português. — O tom de Giovanna agora é quase apologético, mas preserva o humor. A refeição, que ela teria absolutamente abominado em tempos de civilização, também lhe fez bem.

Andréa testa o fio da faca — uma peça única de metal, grande, concebida para cortar carnes, talvez até partir alguns ossos, com a pintura rosa descascando — e fica satisfeita ao ver o rastro liso deixado pela lâmina onde uma leve pelugem cobre seu antebraço. Ela mostra isso a Giovanna antes de devolver a faca à bainha improvisada que tem amarrada na coxa, e desloca-se para ficar deitada no chão com a cabeça sobre as pernas da parceira.

— Agora a sua, porrr favorrr.

E é recompensada com um peteleco na testa.

— Besta. Assim fica forçado. E toma aqui.

A faca de Giovanna tem aspecto mais agressivo, e viu mais ação. O cabo de madeira quase liso conserva alguns sinais de já ter sido estriado. A lâmina é grossa, um pouco mais curta que a de Andréa, preta com uns riscos prateados onde as costelas do policial a arranharam, sobre uma pequena guarda de latão. Até o som que a lâmina faz ao ser raspada na pedra de amolar é diferente.

Giovanna retorna ao assunto que iniciou anteriormente.

— Meu medo é pelos materiais mais pragmáticos. Aqueles livros todos de medicina, energia solar, mecânica… E você ignorou que pode ter outras pessoas querendo entrada no território deles pela mesma via que nós.

Andréa franze a testa um pouco, aperta os olhos castanhos.

— Sim. Mas não acho que precisamos falar de tudo que pode dar errado se nós duas sabemos e estamos sendo cuidadosas. Não agora num desses momentos raros de barriga cheia e com ele dormindo em paz — Ela deita a faca e a pedra sobre a própria barriga para tirar o cabelo dos olhos de Giovanna. — Olha, de verdade, acho que as outras pessoas querendo entrar são o único motivo plausível pros livros não estarem lá quando chegarmos, e já passou tempo demais desde o anúncio. Além do mais, se existisse algum outro grupo tão bem desenvolvido quanto os Restauradores, e com qualquer visão de futuro, teríamos pelo menos ouvido algum boato.

Giovanna assente sem dizer coisa alguma.

— Fora eles, o que sobrou? Os manequins, os religiosos malucos na terra de ninguém, as facções se matando sem parar por qualquer prédio em que talvez a caixa d’água não tenha sido contaminada? Caçando as mulheres para alguma merda de harém de escravas se não quiserem foder manequins e fazendo soldados dos meninos…

— Fala baixo, porra. O Lucas tá dormindo.

Elas permanecem de boca fechada lidando com os próprios pensamentos. Andréa tenta impedir o silêncio total de se instalar na sala de espera, tornando a amolar a faca, mas isso só intensifica a ausência de suas vozes. A pausa dura vários minutos.

— Ele não vai ser levado por ninguém, e nem a gente. Isso vai dar certo. Eu prometo — ela diz antes de ter tempo para pensar bem, e a esperança trêmula nos olhos de Giovanna a deixa à beira das lágrimas. — droga, eu falo em não estragar o momento e faço isso. Me desculpa. — Então se levanta e devolve a faca à parceira. — Dorme um pouco com o Lucas. Eu pego a primeira vigília.

Sem esperar por uma resposta, Andréa lhe dá as costas e finge que vai inspecionar qualquer coisa.

Dois armários trancados — abarrotados, a julgar pelo peso — bloqueiam o acesso aos consultórios da clínica desde que elas chegaram. Ela testa a firmeza deles, que permanecem imóveis mesmo quando aplica toda a sua força na tarefa.

O banheiro masculino tem sangue quase preto nas paredes e pia, e merda esbranquiçada no chão. Elas fecharam a porta e tamparam as frestas com trapos molhados para barrar o fedor já enfraquecido pela idade dos rejeitos. O banheiro feminino está limpo. Em ambos não encontraram qualquer coisa útil.

Andréa sai do banheiro e sobe no balcão para espiar através de uma das janelinhas rentes à linha do teto. O sol já desapareceu totalmente e os últimos ecos de vermelhidão no céu sucumbem rapidamente ao negrume noturno. O luar contorna timidamente as arestas de carros abandonados e postes. Nada se move na rua.

Ela olha para baixo e à direita, e constata que Giovanna já adormeceu. O escuro torna impossível discernir rostos com clareza no aposento, mas Andréa já a viu dormindo o suficiente para identificar uma certa configuração do corpo que significa sono pesado.

“Tomara que durma bem como Lucas. Ela merece.”

Com a vigília toda pela frente, Andréa decide memorizar mais da lista, mesmo precisando forçar os olhos e ler em pé sobre o balcão. Ela desdobra o pedaço de papel pardo com a reverência de quem manuseia um bilhete para o paraíso, surpreende-se pensando assim, e ri para si mesma.

Tennyson, Baudelaire, Goethe, Azevedo, Conrad e Shevchenko… todos nos idiomas originais e muito velhos. Ela conseguia ouvir aqueles nomes na voz potente do líder dos Restauradores locais, depois da execução dos últimos queima-livros da cidade. Graças a ele, a única vertente restante da histeria religiosa que veio com os manequins e o colapso social é a dos flagelantes, até onde ela sabe.

“Se quisermos ter qualquer esperança de recuperar a grandeza perdida, é imperativo preservar a arte e o conhecimento. O que esses imbecis simplesmente não entendem!” e baixou a espada. Ele anunciou a oportunidade à plateia estarrecida enquanto pisava nas costas do queima-livros para desenterrar a lâmina de sua cabeça com mais facilidade.

“No momento travamos uma guerra e não posso enviar o meu pessoal atrás destas obras. Por isso apelo a vocês. Tragam-nas para mim. Com quaisquer três destes livros, qualquer um de vocês pode passar pelos nossos portões depois de interrogado. Com mais, recebe bens úteis para se virar antes de ter uma função oficial. Bastante simples, não?”

O lunático grandiloquente sabia bem o quão cruel estava sendo, mas não se importava. No mínimo cem pessoas o assistiam, e sua lista não tinha sequer sessenta livros. Vários dos que sabiam da oportunidade começaram a se digladiar assim que a equipe dos Restauradores foi embora com o palco e o equipamento de som. Quanto menos concorrência, melhor. Foi dito em um dos poucos pontos de comércio protegidos que um dos grupos grandes que assistiu a execução emboscou várias testemunhas e se dividiu para seguir outras.

A chacina inicial foi enorme e certamente teve ecos na semana seguinte. Passadas duas semanas, apenas metade da lista tinha sido levada aos restauradores. Foi quando Andréa convenceu Giovanna de que a melhor chance que tinham era vasculhar os sebos do centro. Com os queima-livros todos mortos e as facções que antes ocupavam a região tentando se unir para fazer frente aos Restauradores e tomar o território das mais periféricas, talvez o caminho estivesse deserto.

Eles tem professores lá. As crianças dos Restauradores não precisam lutar, pois os líderes as querem aprendendo outras habilidades úteis para alicerçar uma nova civilização. A própria Giovanna é professora e Andréa…

Andréa pode receber virtualmente qualquer das funções menos especializadas, mas provavelmente será soldado. Ela tem a dureza necessária, qualquer um pode perceber com meio olhar. As cicatrizes mostram que ela abriu caminho em uma turba de flagelantes sem ter uma arma decente, o que é notável e provavelmente adicionará algumas perguntas ao seu interrogatório. Nesse caso ela falará a verdade. Se pedirem que dispare seu arco, acertará o centro do alvo com pelo menos a metade de suas flechas, e não deixará de cravar nenhuma das outras ao redor destas.

As duas concordaram que mesmo que Andréa seja integrada a alguma das tropas, não se afastarão de modo algum.

A luz mortiça do alvorecer traz consigo o canto dos pássaros e duas vozes masculinas arengando. É o turno de Giovanna. Ela não precisou acordar Andréa, que abriu os olhos, levantou-se e começou a preparar as coisas para sair em um instante. Lucas dá mais trabalho, mas eventualmente começa a arrastar-se de volta à consciência.

— Temos que ir, rápido — diz Giovanna.

As vozes já desceram do telhado da loja à direita.

— Eu tô falando cara, vamos ter que espalhar as bonecas um pouco mais. Eles tentaram seguir a gente de novo e uma hora vão se cansar de nos pagar e simplesmente arrancar o endereço na base da porrada — uma voz esganiçada e desagradável.

— Espalhar como, animal? — esta voz é normal e fala com calma apesar da escolha de palavras. — Cada um só carrega uma de cada vez a menos que a gente enfie algumas num carro ou carroça. E você sabe o que acontece com quem ostenta assim sem uma escolta armada. É mais negócio arrumar outra clientela e evitar o pessoal do Adolfo.

— Me fala que outra clientela tem um estoque gigante de bebida, então. Só tô nessa pra poder passar o mínimo de tempo sóbrio possível.

Eles já estão na frente da porta pela qual as mulheres e o menino entraram e pretendiam sair. Empurrar os armários e tentar os fundos seria barulhento e demorado demais, então os três se escondem no banheiro limpo com suas coisas. Dois segundos depois, os homens entram sala de espera.

— Vamos terminar esse negócio primeiro e depois resolvemos isso. Agora que estamos aqui, eu quero me divertir um pouco antes de trabalhar. Não me encha o saco até eu sair daquela salinha.

Andréa sente-se como uma mola comprimida. Sua musculatura se retesa e a mão direita vai parar no cabo da faca, já que não teve tempo para encordoar o arco. Ela usa toda a força de vontade que tem para não saltar porta afora e atacar os dois.

— Como você consegue fazer isso todo dia? Não se sente mal?

— Isso soa bem ridículo vindo do sujeito que troca elas por birita com a turma que precisa repor as deles agora que tomaram um mercado. A minha eu trato bem mesmo se estiver com fome. E você sabe que elas não são mais gente. Como meu irmão, seus colegas do trabalho e mais todo mundo que a gente conhecia. Agora me ajuda a empurrar esse armário.

Lucas treme de cabeça baixa nos braços de Giovanna, com as mãos fundas nos bolsos. “Quanto disso tudo ele entende?” ela se pergunta em silêncio enquanto os dois homens grunhem com o esforço de deslocar os armários sem tombá-los. O de voz normal manda o esganiçado ficar na sala de espera vigiando e segue para o interior da clínica, dizendo que em uns quinze minutos já estariam trabalhando.

Outra espera angustiante. Todos os dias tem sua cota delas, mas às anteriores, como a de ontem, falta o peso da fúria malcontida. Um minuto, dois, três. Quatro, e algo inesperado acontece.

Uma brisa momentânea varre a sala de espera e, mesmo dentro do banheiro, o trio escondido ouve os sons da embalagem resvalando no piso e da mão amassando-a ao pegá-la para uma olhada mais próxima. A princípio, seu tom de voz expressa apenas dúvida, mas logo evolui para um princípio de alarme que é interrompido pela súbita abertura de uma porta. Andréa irrompe na sala de espera empurrando Giovanna e Lucas para a saída.

As palavras morrem na garganta do esganiçado ao ver aquela mulher furiosa avançando em sua direção com uma grande faca cor-de-rosa. Ela segura a lâmina firme, mas baixa, pronta para estripá-lo. Lento demais para reagir, ele acaba prensado contra a parede sem mais um pio, com a boca tampada e a poucos centímetros de ficar sem as tripas.

Nada indica que o outro sujeito percebeu o que acaba de ocorrer e todos ouvem novamente o resvalar da embalagem que percorre o piso azuleijado. Lucas relutou em sair e desvencilhou-se de Giovanna antes que ela pudesse arrastá-lo para a rua. Agora aproxima-se dos outros dois sem denunciar sua intenção. Giovanna volta atrás dele, mas ao falar, dirige-se à parceira.

— Não faça nada que você não quer que ele veja agora. Vamos levar esse desgraçado pra fora e amarrar ele em algum poste com bastante pano na boca, pro amigo dele ou alguém pior achar. E vamos embora.

A ponta da faca rosa apenas encosta no tecido da camiseta do sujeito, e Lucas evade outra tentativa materna de levá-lo para fora. Ele tem lágrimas nos olhos mas mantém a expressão facial vazia. Andréa respira fundo e rapidamente, mas não faz menção de afastar a arma do ventre de seu refém.

— Ele vai dar um jeito de ser esfaqueado por outra pessoa, po…

Antes que ela complete a frase, Lucas tira a mão direita do bolso da jaqueta. Ela envolve o cabo de um canivete, que um dia deve ter servido para descascar laranjas ou coisa do tipo, e o enfia em uma perna do esganiçado.

Ele golpeia com as duas mãos no cabo e emprega todo o seu peso na estocada. A lâmina entra inteira pouco acima do joelho, respondendo à pergunta silenciosa de sua mãe. O garoto entende mais que o suficiente.

O homem ferido se debate de tal modo que quase escapa do aperto de Andréa ao mesmo tempo em que se fere na ponta de sua faca. “Agora não tem mais o que fazer”, ela pensa, antes de afastar o braço e estocá-lo no coração, mantendo a pressão até que ele pare de se mexer.

Sangue escorre entre os dedos de suas duas mãos.

O cadáver desliza para o chão deixando um rastro na parede branca.

Giovanna arrasta Lucas para fora.

Ele parece drenado pelo próprio ato. Seus membros pendem como os de uma marionete cujas cordas foram cortadas. A cor sumiu de seu rosto, e a expressão vazia deu lugar a um esgar de triunfo que o tornou terrível de se olhar.

São partes iguais de desprezo, raiva e satisfação consigo mesmo. O olhar de quem acredita que fez justiça com uma arma, sublinhado pela linha torta e indecifrável de sua boca.

Andréa embainha a faca e enfia as mãos nos próprios bolsos para que ele não perceba o tremor que as tomou. Não por que matou, mas por que o filho deliberadamente a fez matar. E por que já viu a expressão antes.

No rosto do Restaurador que desenterrava a espada do crânio de um queima-livros.

Metade do dia prossegue sem maiores incidentes, e o trio só troca palavras quando absolutamente necessário. Eles saem da rota planejada para desviar de dois grupos de homens — que podem muito bem ser o “pessoal do Adolfo” — sem serem detectados, passam por cima de uma barricada e tampam os narizes para não respirar fumaça quando o vento dissolve uma coluna cinzenta a duas quadras de distância. Outra coluna, negra e oleosa, ergue-se mais ou menos da direção do shopping Royal Plaza. É a fumaça de algo que ainda está queimando e não parece pronta para se dissipar tão cedo, o que é tão preocupante quanto útil como referência visual para o deslocamento.

As mães evitam o olhar do filho e ele se recupera devagar. A princípio ele parece olhar para outro plano de existência enquanto empurra a carriola, depois torna a agir quase normalmente. A cor volta ao seu rosto, agora insondável como de hábito, e ele pisa com firmeza. Giovanna repara primeiro em sua postura mais relaxada e decidida, gesticula para Andréa.

Ele parece ter-se livrado de um peso.

Talvez o da inocência que elas pretendiam preservar; “para o bem dele”, imaginavam. Ou que impunham a ele em um mundo que não mais a tolera, subestimando sua inteligência.

Talvez o peso de uma farsa que ele vinha mantendo há sabe-se lá quanto tempo; “para o nosso bem”, conclui Andréa, sem saber como reagir. Ela manuseia o pensamento com cuidado. É uma coisa pesada e cheia de pontas afiadas, e ela não quer que fique solta dentro de sua cabeça.

É com algum esforço que sai de seu devaneio quando percebe que os outros dois pararam na esquina logo adiante. Giovanna dá um par de passos instintivos para trás e Lucas permanece plantado no asfalto, olhando fixamente para o que quer que seja. Ele deixa cair a carriola e busca algo no bolso mas logo retira de lá a mão, presumivelmente lembrando-se de onde deixou aquele canivete a respeito do qual não contara a nenhuma das duas.

Giovanna tenta gesticular uma negativa, mas Andréa chega correndo para ver o que há. Estão na intersecção das ruas Pará e Brasil. A Pará é bloqueada à direita, na esquina seguinte, por um monte entulho de pelo menos dois andares que inclui até os restos de dois caminhões. No topo da barragem, três pessoas crucificadas; a do meio já não passa de um esqueleto.

À esquerda, toda a extensão da rua até onde a vista alcança é dominada pelos bonecos.

Estão todos nus e arrumados em poses. Vários apontam para os telhados, onde agora Andréa vê que há mais cruzes de madeira, algumas ainda desocupadas. Entre os que apontam, porém, alguns exercem funções mais inusitadas.

Um homem gordo sentado sobre uma mulher de quatro tem nas mãos um monte de comida podre, e ossos de animais amontoados aos seus pés. Outra mulher, de joelhos, segura um cabide de modo que parece prestes a enfiá-lo entre as pernas. Vários dos homens representam sodomitas. Outro, já velho, tem uma estola de padre sobre os ombros esquálidos e sorri mostrando os dentes diante de uma pilha de dinheiro.

Há pássaros pousados em vários deles, mas eles deixam as peles que parecem cera e os olhos vítreos intactos. Cães ladram não muito longe.

Quase na intersecção, há três cadáveres estirados no chão. Praticamente frescos. O sangue ao redor ainda não terminou de secar e alguns dos pássaros já perceberam que estes são dignos de sua fome. Os três vestem roupas pretas e cinzas, com coturnos e fitas vermelhas nos braços direitos. A mulher alta na retaguarda do grupo, mais distante de Giovanna, Lucas e Andréa, ainda tem os dedos apertados ao redor do cabo de um fuzil FAL.

É a indumentária característica dos Restauradores. Andréa puxa os outros dois para trás da lanchonete na esquina ao perceber que foram baleados pelas costas. Talvez tenham sido abatidos de longe e os responsáveis logo venham tomar as boas botas e…

… as armas.

Talvez água e comida, mas nenhum deles tem mochila visível.

Ela se prepara para ir correndo na direção dos mortos quando Giovanna a puxa para o chão.

— Você enlouqueceu?!

Andréa se desvencilha e retruca:

— Se quem quer que fez isso ainda estivesse olhando, nós ainda estaríamos ali — ela gesticula para o pedaço da rua em que estavam até um par de segundos atrás. — Mas se não formos logo, vamos perder a oportunidade.

— A gente não precisa da merda de um FUZIL, Andréa! E você por acaso sabe mexer em um?! Hein?

— Posso aprender. E fala baixo. — O tom da resposta é gélido.

O breve silêncio entre as duas é pesado. Lucas encara com interesse a discussão, com alguma expressão voltando ao rosto junto com a cor.

— A gente não precisa disso se não formos nos meter com gente desse nível. Nos viramos bem até agora sem isso. E se alguém vier? Eu só tenho 3 balas, você tem um arco e flechas, e o Lucas é só…

As palavras morrem em sua garganta.

— Vamos embora, por favor. METADE DO MOTIVO DE QUERERMOS OS OS MALDITOS LIVROS JÁ NÃO EXISTE MAIS! — Ela diz isso voltando-se para Lucas, com lágrimas nos olhos.

Andréa a empurra contra a parede e tampa-lhe a boca com a mão, então estica a cabeça para ver se algo vem pela rua ladeada de bonecos.

Nada diferente. Nem uma brisa.

— Fala. Baixo.

E dá espaço para Giovanna se mover, então toma a palavra.

— Um quarto do motivo. Não seja besta. Os outros três são a sobrevivência de cada um aqui.

— Aquela que você pretende arriscar se metendo no território que os religiosos malucos arrumaram pra caçar gente como nós?

Enquanto elas discutem, Lucas avança na direção do caminho sinistro a que ela se referia.

— Chega — ele diz, sem se virar para trás. — Você sabe que é a nossa melhor chance de qualquer jeito, mãe. Qualquer outra coisa é só enrolação. Você não pode virar a criança do grupo só por que eu não consigo mais ser.

— Escuta a…

Lucas dirige-se a passos largos na direção dos Restauradores mortos, correndo no fim do trajeto e deslizando o último metro, e imediatamente começa a revirar os bolsos deles.

Um cachorro grande e pardo surge de trás de um parte de bonecos, rosnando, de pelos eriçados. Lucas o encara estupidamente antes de Andréa meter-lhe uma flecha no pescoço. O bicho morre sem sequer ganir. O menino se encolhe um pouco mas logo torna a fuçar bolsos.

— Eu concordo com ele — diz Andréa, mas ainda sem acompanhá-lo. Ela e a companheira mantém um contato visual doloroso.

A mulheres se abraçam por um longo momento, buscando forças uma na outra, e é como se o planeta parasse de girar ao redor das duas por um instante. Quando se separam, a súbita retomada do movimento as impele rumo ao corredor sinistro.

Giovanna diz em tom hesitante, dirigindo-se a Lucas:

— Nós vamos.

O alívio que invade o rosto dele ao ouvir isso é de quebrar o coração, mas recompensa todo o esforço que ambas fazem pare reconhecer nele o filho. Ele próprio parece prestes a chorar.

— Que bom — então se levanta com uma pistola nas mãos, e ejeta o carregador como se lembrava de ver os personagens de videogame fazendo. Ele capta o lampejo de preocupação que cruza a tristeza amenizada de Giovanna.

— Você não acha que eu vou dar mais um passo pra esse lado sem uma arma, né?

--

--